09 janeiro 2011

King Crimson Islands - 40th Anniversary Edition

Este deveria ter entrado nas reedições de 2010, caso a Amazon o tivesse entregue a tempo... Assim sendo, foi uma óptima maneira de começar 2011, o primeiro disco novo que me passou pelos ouvidos.

Há muitas discussões sobre qual o mellhor disco dos King Crimson. Haverá tantas respostas quanto os discos que eles têm, obviamente. Principalmente os primeiros discos, isto é, até à 2ª fase, a que se iniciou com "Discipline", são fortes candidatos a figurar como um dos preferidos. Eu próprio não tenho uma resposta, porque cada disco dos KC tem personalidade e encantos próprios e é difícil eleger um. Este "Islands" corresponde a um período de quase encruzilhada na jovem carreira da banda, mudanças de pessoal (entrada de Boz Burrell como vocalista e também como baixista, formado à ultima da hora, por impossibilidade e falta de vontade de passar pelo processo de casting) e indefinição do rumo a seguir. A verdade é que "Islands" encerra a fase mais poética dos KC, aquela em que é evidente a influência de Ian Wallace e Mel Collins e a lírica de Sinfield. O álbum seguinte, "Larks Tongues in Aspic", demonstraria o vigor da escrita de Fripp e a pujança que a sua guitarra estava a tomar: e que neste álbum começa, em dois momentos, a formar-se.

"Islands", mesmo retirado do seu momento , do pano histórico em que se formou, é um álbum soberbo. Eu comecei a ouvir KC sem a história: ouvia a música, gostava / não gostava, e só depois foi descobrindo a banda. Comecei pelo mítico "In the Court..." e fiquei arrepiado: nunca tinha ouvido música assim. E cada disco "novo" era uma surpresa. "Novo", porque no início dos anos 80 já tinham sido publicados todos há mais de dez anos... os meus colegas de escola, excepção feita a um grupo de ouvido atento, ouviam, na maior parte, o que dava nos topes, Samantha Fox, Human League, Classix Nouveaux, Bon Jovi, Limahl, merdas do género, ou tornavam-se metaleiros e pouco mais. A descoberta dos KC foi como entrar na caverna de Ali Babá. Tudo reluzia, tudo era ouro. Aqueles tipos estavam muito à frente. Não havia net nem descargas a rodos, os discos menos populares tinham que ser importados. Era o passa-palavra, as cassetes gravadas e o pouco dinheiro para os vinis. Um LP era um objecto religioso, pensado, estudavam-se as melhores hipóteses para empregar os cobres, ouviam-se vários (na Tubitek, no Porto, por exemplo), antes de tomar a decisão. Depois, era um formigueiro até chegar a casa e pôr a agulha em cima das espiras e entrar em extase... Eu gravava os meus discos para não os estragar. As idas à Vandoma eram jornadas de expedição, nas quais se podia voltar a casa com um tesouro arrancado às mãos de um bárbaro. Quantas vezes não fui vender trastes e voltei com menos dinheiro do que tinha levado...

Enfim, outros tempos, e se agora os relembro é apenas para mostrar o valor que a música pode ter, o cuidado com que ela pode e deve ser ouvida. O meu vinil de "Islands" veio do Canadá, via um primo que lá vivia e que tinha a pachorra de andar pelas lojas de música de lá, em que estas coisas também já eram antiguidades, para satisfazer a minha wishlist... Desnecessário dizer que ano em que ele vinha a Portugal era ano de festa e a espera uma imapciência. Foi assim que me chegou às mãos o "Islands".

E é um disco soberbo. Ponto. Antes dele, "Lizard" foi o encontro dos KC e do rock inglês com o free jazz. "Islands" misturava mais. Há ainda momentos que resvalam para a improvisação jazzística, como o final de "Formentera Lady" ou o interlúdio de "The Letters", há também o excelente piano de Keith Tippet no tema-título, há sinfonismo de câmara, como em "Song of the Gulls", há rock. "The Letters", derivado de um tema anterior que nunca chegou a ser gravado ("Drop in"), é uma prestação vocal de arrepiar numa letra que é um exemplo de contenção e dramatismo. É um tema como uma peça de teatro, encenado, com un interlúdio selvagem que ilustra a confusão interior da protagonista (há que ouvir para perceber). E depois há dois momentos de viragem: "Ladies of the Road" e "Sailors Tale". O primeiro, porque é, creio, a última herança registada em disco de originais do lado mais bluesy da banda (e que agradava mais a alguns membros, como Burrell e Wallace), que ainda se manifestou de seguida no semi-pirata ao vivo "Earthbound", que é, ele também excelente. E também pelo solo de sax e pela melodia invertida da guitarra no refrão e pelo solo de Fripp, a rasgar. O segundo, porque é dos temas mais assombrosos que conheço, quer a nível de composição, com blocos que se movem, quer pelo solo de sax, quer sobretudo pelo solo de Fripp, que é, de uma invenção e genialidade que poucas vezes ouvi, em qualquer género musical. Quando entra a guitarra tocada a espasmos da mão direita estamos já noutra dimensao em que o resto da música deixou de existir e esta deixou de ser comparável a qualquer outra. Nas notas do disco, O próprio Fripp escreve: "the solo was, and is, from some other world"; "technically, the right hand could only have been developed by someone familiar with the banjo (...).Other references would include Sonny Sharrock (notably with Herbie Mann) and the idea of Peter Townshend's flailing. And maybe a subversion / perversion of early Scooty Moore, with echo delay, at the Sun sessions. But none of this seems relevant somehow. Late at night, faced with a solo to be played, for which there was no solo available, something happened: a young guitar player was confronted by necessity.And then something remarkable happened...". Sem dúvida.

"Islands", o tema-título, embora fosse classificado na altura por um dos membros da banda como "airy-fairy shit", é uma evocação das ilhas, sejam elas os lugares na distância, sejam as ilhas interiores que nos abrigam. É de uma doçura pouco vulgar no rock e nos KC, talvez com paralelo em "Moonchild" do primeiro álbum. Os dois temas sucessivos, a flauta de Mel Collins, o oboé de Robin Miller, que é a espinha vertebral (há um excerto de uma outra versão neste disco em que ele é mais inteligível), a inteligência melódica de Tippet, que indicia e apoia e nunca se sobrepõe, , a deriva final, com o tema tocado em fundo no Mellotron, a qual termina com uma mudança de tom, um anti-climax, como se a música desistisse, são das memórias musicais mais profundas e duradouras que tenho. Sei que quando já estiver entre quatro tábuas ainda hei-de ouvir esta música na cabeça.

E pronto. Em 2011 já lá vão 40 anos. Esta reedição vem em dois discos, um CD e um DVD, com o remix em MPL Lossless 5.1 surround e DTS 5.1, para quem  quiser ouvir em sistemas de AV, a mistura original do album (2004 e 2010) e ainda esta edição em MLP lossless stereo e PCM Stereo. E seis faixas de bonus com versões alternativas e um tema nunca antes editado.

Em tempo: a ideia de pôr o ensaio da orquestra no fim e terminar o disco quando o condutor finaliza a contagem do compasso ternário só podia vir de ingleses. País que pariu os Monty Python sujeita-se a isto.

1 comentário:

  1. Concordo absolutamente e partilho do mesmo “transporte” do Luís! O Islands é uma obra extraordinária e verdadeiramente inclassificável! Tudo cabe nesta “Ilha” alucinante onde tudo existe transubstanciado em algo que é mais do que a soma das partes, isto é, muito para além de um somatório de influências “clássicas”, de Jazz, de Rock, do que se quiser! Tal como o William Fanarby na “Ilha” do Huxley, somos tomados de assalto pela transcendência do que ouvimos e sentimos (vemos?!).
    É claro que "Islands" está entre os meus preferidos dos King Crimson, ao lado de Lizard e Larks’ tongues in Aspic (confesso o meu fraquinho por este último), e já na década de setenta fazia parte das longas audições de música que se perpetuavam pela longa noite… luminosa e filosófica...

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