10 março 2011

In a Glass House

Tive o prazer de ouvir recentemente o "In a Glass House" dos Gentle Giant em disco preto, em casa do Luís, e fiquei maravilhado com o que ouvi! Foi um verdadeiro flashback! Há muito que não ouvia a velocidade estonteante da guitarra na primeira música, a batida seca das paragens instantâneas… os timbres das madeiras… tudo integrado (o "In a Glass House" é o exemplo maior desta precisão temporal sem paralelo)! Sou o feliz proprietário de um leitor de CDs considerado “high-end” e quase não consigo ouvir o disco… sem mais comentários.
Tentar explicar por que gostamos tanto de música, por que razão há melodias, intervalos ou acordes que nos parecem sublimes e outros insuportáveis ou menos felizes, não é certamente assunto para este breve texto sobre a música dos Gentle Giant, a qual marcou profundamente a minha juventude nos anos 70. Neste contexto, limitar-me-ei a dizer que a música criada por este singular agrupamento desses anos extraordinários (o primeiro álbum é de 1970) tem a capacidade – tal como algumas outras obras musicais, independentemente dos estilos ou dos rótulos de que tenho falado noutras conversas – de nos transportar para lugares diferentes; de nos enlevar a alma e extasiar com tal intensidade, que nos obriga a reflectir neste poder quase primitivo que a música tem face a outras formas de expressão artística, pretensamente mais “utilizadoras” das camadas recentes do nosso cérebro. Atrevo-me a dizer que a música permite, como nenhuma outra arte, esta ligação directa às regiões responsáveis pelas funções mais básicas da nossa sobrevivência! Muito se tem escrito sobre a influência da música nas plantas, havendo iniciativas espalhadas um pouco por toda a parte sobre essa suposta influência, desde estudos feitos pelo Instituto de Agricultura Biotecnológica da Coreia do Sul em plantações de arroz até ao repouso de vinho biológico ao som de Canto Gregoriano! Algumas dessas iniciativas serão certamente mais sérias do que outras (aposto claramente no Canto Gregoriano), mas a verdade é que ainda ninguém se interessou em estudar o efeito do “Le déjeuner sur l'herbe” do Manet sobre os plátanos e é ainda menos provável que alguém se interesse pelo efeito da leitura dos "Lusíadas" sobre a hortaliça… talvez o “Guernica” ou os “Cantos de Maldoror” tenham alguma influência na vegetação!
Na verdade, a música dos Gentle Giant permite este enlevo instantâneo e devastador, mas, à semelhança de outras “boas” criações (independentemente das etiquetas), sem ser à custa de fórmulas consonantes repetitivas, largamente utilizadas na música de massas e que tanto tem servido para denegrir a imagem do Rock em certos meios intelectuais (mais um rótulo que dá jeito). Tal como já disse aqui no Peru (e não abdicarei de o dizer), os nomes valem o que valem. Temos necessidade de classificar as coisas – é assim que pensamos, comunicamos e agimos. É claro que esta necessidade não justifica o risco de afeição obstinada (redutora) por um dado “tipo” (nome) de expressão artística, ainda que constitua parte do fenómeno. Bem pelo contrário, os Gentle Giant afastam-se de uma tradição “homófona” associada à música “popular” que se caracteriza pela ausência de articulação contrapontística das vozes, fazendo da sua música uma verdadeira construção polifónica! Não é vulgar, ainda que se trate de “rock progressivo” (estas classificações são mesmo úteis). Já não se trata de fazer melodias sem dar muita atenção ao carácter melódico dos elementos de acompanhamento. Não basta escrever melodias e acrescentar acordes (ou construir melodias sobre sequências harmónicas) … neste caso, os aspectos verticais (acordes) são acidentais (não significa que sejam descurados) quando o contraponto é o elemento criador de textura! Muitas vezes as harmonias são, na música dos Gentle Giant, naturalmente produzidas por linhas melódicas simultâneas, bem ao gosto da tradição erudita.
Nada tenho contra a música simples, bem pelo contrário. Fazer música complexa não significa fazer boa música e há milhares de exemplos de música muito simples verdadeiramente genial! Mas estando a falar dos Gentle Giant, não posso deixar de realçar alguns aspectos especiais que caracterizam a sua obra, designadamente a sua extraordinária complexidade tanto ao nível da composição como da execução. Mas há mais, e esse mais é o que realmente importa. Os três irmãos Shulman e os restantes membros do grupo não se limitaram a mostrar que dominavam os vários (muitos) instrumentos que empregam na música! Não se trata de uma manifestação de virtuosismo (como as que há aos pontapés) e muito menos de uma produção morna e sem brilho resultante de um somatório de influências eruditas com sabores de folclore inglês, jazz, rock, música antiga (madrigais, canto gregoriano, motetos), música dos períodos barroco, clássico e contemporâneo atonal, tudo à mistura e muita fé! Nada disto! Os Gentle Giant criaram uma música realmente nova e diferente, mas o mais importante é que essa música é verdadeiramente boa (ser diferente e original também não basta) …
A música que produziram consegue, com notável mestria e bom gosto, um equilíbrio perfeito entre construção e alívio de tensões, entre o subtil e o agreste, o etéreo e o denso, o odor quente das madeiras antigas e o fulgor metálico da electrónica. A velocidade estonteante das linhas melódicas, a incrível leveza (ausência de inércia) das síncopes e das paragens instantâneas; a interacção entre as dissonâncias e o conforto da sua resolução, constituem um todo verdadeiramente inebriante e vertiginoso que se traduz em emoção, expressão e beleza!
Quanto a temáticas e símbolos, há, entre outras inspirações literárias, clara influência de Rabelais: “Pantagruel's Nativity” (em Acquiring the Taste), “The Advent of Panurge” (em Octopus), entre outras referências (o nome do grupo e a cativante figura do gigante, presente em todos os álbuns, são alusões a Pantagruel).
Não me alongarei em descrições sobre a constituição do grupo propriamente dito (há material em grande quantidade na net que pode ser consultado). Conheço bem todos os álbuns até ao "Interview" (1976), sendo que os meus preferidos são os primeiros sete: "Gentle Giant" (1970), "Acquiring the Taste" (1971), "Three Friends" (1972), "Octopus" (1972), "In A Glass House" (1973), "The Power And The Glory" (1974) e "Free Hand" (1975). O "Gentle Giant", o "Acquiring the Taste" e o "In a Glass House" são, na minha opinião, verdadeiras obras-primas.
A banda foi formada pelos três irmãos Shulman (Phil, Derek e Ray), os quais, em conjunto com Kerry Minnear, são os principais compositores.
Derek Shulman (voz principal, saxofones, percussões, "Shulberry" e outras cordas)
Ray Shulman (voz, viola baixo, percussões, violino, violoncelo e outras cordas)
Phil Shulman (voz, percussões, instrumentos de sopro e cordas) – bastante mais velho que os irmãos, participa nos quatro primeiros álbuns: “Gentle Giant", "Acquiring the Taste", "Three Friends" e "Octopus"
Kerry Minnear (voz, teclados, vibrafones e outras percussões)
Gary Green (voz, guitarras, outras cordas e percussões)
Martin Smith (bateria e percussão) – participa nos dois primeiros álbuns, "Gentle Giant" e "Acquiring the Taste"
Malcolm Mortimore (bateria e percussão) – apenas participa no terceiro álbum, "Three Friends”
John Weathers (bateria, percussão) – participa em todos os restantes álbuns
(muitos outros instrumentos são utilizados, como sejam: o cravo, o clavicórdio, a harpa, o alaúde e o “shulberry", instrumento de cordas especialmente criado por um tal Dave Zammit, para Derek Shulman).

5 comentários:

  1. Hélio, excelente post. Não ficou nada por dizer. Ainda assim, diria que a música dos GG é das tripes mais conseguidas do rock!

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  2. Eduardo Romano16:52

    Cantos gregorianos (mais concretamente "chamar o gregório") e vinho é de facto algo que me parece fazer sentido.

    Tenho pena de não conseguir fazer parte desta "classe superior" da raça humana que consegue distinguir um mau de um bom acorde nem tão pouco conseguir soletrar à primeira a palavra "clavicórdio" (sem falar que não faço ideia que raio é um "moteto" - diria que seria uma mota assim para o pequeno...) mas orgulho-me de poder dizer que consigo distinguir o bom do mau vinho - e isso sim meus amigos - é música para os meus ouvidos!!

    Parabéns pelo post e continuem pois assim sempre vou aprendendo e conhecendo o que é que me passou completamente ao lado na década de 70!

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  3. Cristina Dutschmann17:02

    Excelente artigo. Só podia ser teu.

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  4. Mais um comentário do Eduardo que justamente incita à especulação filosófica (já é o segundo)!

    Se me pedissem para identificar uma qualidade que fosse comum à música, ao vinho e às motas, não hesitaria em responder que estas três matérias de culto e de prazer, exactamente porque o são na mais pura acepção da palavra, vivem nos antípodas do paradigma cartesiano!

    Não são necessários conhecimentos de teoria musical, de enologia ou de mecânica automóvel… amam-se, pura e simplesmente.

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  5. Minha querida Cristina,
    Com essas palavras, vindas de ti, fico eu sem palavra! Resta-me pensar que gostaria de te retribuir com “Eine kleine Nachtmusik”!

    ;)

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