A iniciar a digressão europeia, Roger Waters deu ontem o segundo concerto no Pavilhão Atlântico, uma recriação do espectáculo (actualizado) de "The Wall", que fez 30 anos e que pela ultima vez foi encenado há 12. "Encenado" é o termo certo, porque não estivemos perante um concerto de rock, mas sim perante um espectáculo operático, uma peça em "n" actos que convocaram cada um deles imagens, sons, actores e figurantes.
Em termos de encenação, de espectáculo, de dimensão, nunca vi nada assim. O muro serve de tela a uma sucessão de imagens e ambientes. Visualmente, um assombro. A actualização do espectáculo, que recupera imagens da digressão de 81 e animações de Gerald Scarfe para o filme de Alan Parker, traz o tema da alienação para o presente, bem marcado no ênfase dado a frases como "Mother, should I trust the government", com a pateada subsequente da assistência, ou os sucessivos iQualquer-coisa, como iKill, que alertavam para as tentativas de distracção dos problemas reais e encaixavam na construção do muro (digital?) à volta do indivíduo. Se o Muro tinha um significado bem real em 1979 (o muro de Berlim estava de pedra e cal...), também é verdade que a ideologia de Waters evoluiu - nos anos 70, os PF foram contribuintes generosos do partido comunista inglês, e certamente que o ditador da história era um fascista hitleriano. Hoje em dia, Waters mistura todos os símbolos: capital, comunismo, estrelas de David, a lua e estrela árabes, e o símbolo da Shell... Hoje o alvo é o controlo, a sedação da inteligência, em todas as suas formas.
Espectáculo feito de fantasmas privados, é certo, das memórias da perda do pai na guerra, da mãe dominadora, do professor-fantoche, etc; mas tornados universais na construção do indivíduo longe de tudo e de todos, resguardado para se proteger, atrás do muro. Muro que o espectáculo construiu; consta que em resultado da própria necessidade de Waters isolar a sua banda a determinada altura, no final dos anos 70, para se alhear do público que vi neles fonte de entretenimento mas não de reflexão. Waters pensou numa banda que tocava por detrás de um muro; e esse muro transformou-se em metáfora do isolamento do indivíduo, e logo de seguida fez-se canção.
Muro que o espectáculo destruiu também, no final do julgamento, deixando a sombra indefesa de uma pessoa revelar-se. A apoteose da destruição do muro é de certa forma um grito de revolta, que curiosamente é ordenado pelo poder judicial como uma punição. É uma contradição que nunca entendi no enredo da obra, mas certamente a mente de RW é bem mais tortuosa que a minha...
Não caberá fazer a crítica dos executantes, naturalmente competentes. O único aspecto, grave, que merece reparo, é a própria acústica do Pavilhão Atlântico, que em determinados pontos da plateia pode arruinar completamente a experiência acústica. Eco, compressão, sons parasitas, são o que não se espera de uma sala nova e multimilinária. Não houve dinheiro para um projecto acústico decente? Inacreditável...
Um espectáculo inesquecível para quem lá esteve, e também muito certamente irrepetível. A única coisa que faltou foi mesmo a guitarra de Gilmour durante o solo de Comfortably Numb...
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