18 novembro 2013

Roy Harper – Man and Myth


Já algumas páginas se escreveram sobre o regresso de Roy Harper aos originais, mas não é tarde para o Perú saltar em cena. Primeiro, porque foi só em Outubro que o álbum saiu, segundo porque o salto de um Perú é sempre elegante. A aterragem é que pode não ser…

Pois então: Roy Harper está nos 70, e não é de modo gratuito que o trabalho se intula “Hom
em e Mito”. E não é por acaso que Harper aparece na capa ornamentado comum par de chifres de bode. Harper é o fauno da música inglesa, criatura silvestre e fugidia, de perfil independente e másculo. Harper, o bardo genial e incómodo. Harper, o Mestre reverenciado por gente tão insuspeita como Jimmy Page, ou Joanna Newson. Harper, o ausente, a figura paternal equívoca.

Eis a questão: começa a chegar a altura de avaliar as figuras fundadoras da música moderna. A maior parte deles não dura muito, pelos cânones normais da existência. A morte de Lou Reed foi um golpe rude; foi o mais recente dos grandes mitos a cair, e um particularmente importante. Roy Harper não tem a projecção nem a importância de Reed, mas é uma figura de referência que vem a ganhar relevância com a idade. Quem será o próximo? Leonard Cohen? Neil Young? Mick Jagger? David Crosby? Roger Waters? Joni Mitchell? Paul Simon? Bob Dylan? Burt Bacharach? Ennio Morricone?

Qualquer uma destas perdas começa a parecer essencial, e a sua importância a ser avaliada pelo vazio que a sua presença cria. Mas não será antes porque nos recordam como a sua obra nos tocou? Acho que sim.
Muitas vezes me questiono como se mede a importância e a permanência da música. Para mim, que ouço música de forma compulsiva e apaixonada há 30 e alguns anos, que conheço milhares de obras, é uma pergunta com pertinência. O que se salva do imenso oceano do olvido? O que levar connosco no grande naufrágio? O que se destaca pelo seu lugar na evolução, o que faz avançar para outras viagens?

Muitas vezes, respondo a essa questão com a mais simples emoção: o tema que nos faz subir lágrimas aos olhos, de tão simples. A invenção de três acordes que, acompanhada das palavras certas, fez uma revolução. A energia que de tão intensa sugou toda uma geração. Há fenómenos assim, e os nomes assim mencionados não são ocasionais – são essenciais, entre muitos outros, para moldar um futuro. Para fabricar descendência. Não é despropositado dizer que uns Fleet Foxes não poderiam existir sem Roy Harper. Já para não falar de descendência quase incestuosa como Jonathan Wilson e David Crosby e Graham Nash, aliás só assumida no último álbum de JW, em que ambos participam no espantoso “Cecil Taylor”. Ou dizer que toda a folk de autor feminina é descendente de Joni Mitchell, de forma mais ou menos direta. Já para não falar de exemplos tão batidos como os Beatles e a influência no nascimento do rock psicadélico, progressivo, na pop e sabe-se lá mais o quê que nasceu da obra do seu período 1966-1970.
Traçar estas linhas é uma questão de razão e emoção.

Um DVD que comprei há uns meses mostrava RH sozinho no estúdio, uma guitarra, um grupo pequeno, hipnotizado, suspenso de cada uma das suas palavras e inflexões, mais que reverente, embevecido. O que faz um ancião (e não há que ter medo das palavras, num país em que os velhos apodrecem em lares indignos), mover uma sala? Não poderia ele estar também com uma manta nas pernas, um chá na mão, a ver as gouchices de um qualquer idiota televisivo?
Creio que é a noção que algumas destas figuras têm de que o seu lugar essencial ainda não foi preenchido que as leva a pegar na guitarra, sentar-se ao piano e dizer: estou vivo! Esta é a minha arte. Este é o caso de Bill Fay, por exemplo. Os Family voltam dar concertos. Os Camel ressuscitaram. Os Barclay James Harvest gravam de novo. Os Moody Blues organizam cruzeiros onde é possível ficar pedrado durante 9 noites ao som de Roger Daltrey, Jon Anderson e figuras mais e menos obscuras dos últimos 40 anos de musica anglo-saxonica. O passado nunca esteve tão vivo (embora, e até pelos exemplos atrás, com graus de relevância muito diferentes…)
Sem entrar em polémicas musicais sobre o valor de muitas das obras produzidas, a verdade é que estamos a passar de uma época em que os criadores produziram e interpretaram as suas obras para uma época em que outros as interpretam. De forma mais ou menos reverente, surgem grupos que, tal como acontece no jazz ou na música dita “clássica”, interpretam obras de música popular. E, na realidade, é quando alguém pega na obra e a lê como objeto estranho que a obra revela o seu caráter plástico. É certo que é possível pegar no inefável José Cid e fazer um quarteto de cordas do macaco que gosta de banana, e exemplos não faltam de índole semelhante, como os Apocalyptica a “classificarem” Metallica, mas não é a mesma coisa. Hoje em dia começam a aparecer intérpretes – músicos que leem a música e a letra e que, com respeito pelo original, lhe transmitem um cunho pessoal. Vamos ver mais disto nos próximos anos em obras de gente que admiramos.

Na raiz de tudo isto está musica verdadeira – música que transporta as pessoas.

Dito isto, tenho que fazer uma defesa dos velhos. Não dos que fazem render uma música velha e passada, como John Lees dos BJH, mas dos que vivem a sua idade. Como Bill Fay a cantar “Life is People” ou RH a cantar “January Man”. Quantas vezes temos a oportunidade de entrar na alma de uma pessoa e lê-la sem intermediários? Quantas vezes é possível passar por cima de todas as imagens reflectidas que cada um cria para afastar a proximidade, qual estrume emocional em cima de campos estéreis? Em RH não há bullshit. Em January Man ele diz-nos, “January Man must do what it can to keep winter at bay”, a propósito de todas as emoções impróprias que afloram na presença de uns jovens olhos do tamanho do oceano, para pedir desculpa por ter perdido o controlo das suas emoções. Um testemunho da mortalidade e da distância entre o espírito e o corpo de um homem a afastar-se da sua vida.

“we are condemned to do the same mistakes all over and over and over and over and over again”

Portanto, 47 anos depois de ter começado, RH lança o seu 23º álbum, 13 anos depois do último. Com a produção de Jonathan Wilson, uma ajudinha de Pete Tonwnsend em “Cloud Cuckooland”. It’s only rock’n’roll, baby, and I like it.
Se quiserem ir para trás, explorar este rico passado, ouçam “When an old cricketeer leaves the crease”, de “HQ” , “Bullinamingvase” ou “Stormcock”.

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